Indústria e governo têm discutido a possibilidade de um novo programa de incentivos para que os carros fiquem mais baratos no Brasil. Hoje, o título de automóvel mais em conta é dividido entre Fiat Mobi e Renault Kwid, que partem de R$ 68.990.
Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, o anúncio deve ser feito em 25 de maio pelo Ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (e vice-presidente) Geraldo Alckmin. A data foi escolhida a dedo por ser também o Dia da Indústria.
Procurado por Autoesporte, o ministério disse que “a proposta está em estudo pelo MDIC e envolve, ainda, outros entes governamentais”, mas não deu mais detalhes sobre o que pode ser anunciado.
Ainda de acordo com a Folha, a ideia é ter carros populares com preços na faixa de R$ 50 mil a R$ 60 mil. Autoesporte apurou que essa meta pode ser alcançada em um esforço coletivo: redução de impostos por parte do governo e simplificação dos modelos do lado das fabricantes.
Porém, essa simplificação pode ser bem diferente da vista no início dos anos 1990. Na época, as fabricantes tiraram quase tudo que não era obrigatório entre os equipamentos para baratear os carros. A lista é longa e inclui tornar a quinta marcha opcional, usar vidros mais finos e tirar vários itens: foram para o espaço retrovisor do lado direito, apoios de cabeça dos bancos e janela quebra-vento retrátil.
De todo modo, o “novo carro popular” deve seguir uma das premissas dos anos 1990: ter motor 1.0. Mas, de forma geral, será bem mais sofisticado. Isso porque as leis ambientais e de segurança avançaram nos últimos 30 anos. Além disso, a eficiência energética deve ser recompensada.
Há quem aposte que itens como ar-condicionado, direção assistida e vidros elétricos dianteiros sequer desapareçam das listas de equipamentos.
É o caso de Cassio Pagliarini, sócio da Bright Consulting e profissional com mais de quatro décadas de experiência na indústria automotiva. “O cliente não quer um carro sem direção assistida, ar-condicionado ou vidros elétricos dianteiros”, afirma. Assim, por mais que a retirada desses itens ajude o preço a ficar mais baixo, esses carros podem acabar encalhados nos pátios.
Um fato que ajuda a comprovar essa tese é que há anos Fiat e Renault tiraram de linha as versões sem ar-condicionado e direção assistida de Mobi e Kwid.
Gustavo Lima, mentor de Manufatura da SAE, engenheiro mecânico e coordenador do Programa de Gestão de Inovação e Tecnologia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta uma outra questão na retirada dos itens: a diferença entre o custo dos equipamentos e o valor agregado.
“O ar-condicionado pode custar R$ 2 mil, por exemplo, mas faz com que o preço dele suba R$ 6 mil. Dessa forma, retirar o item não faz o carro ficar necessariamente R$ 6 mil mais barato. O custo do equipamento não se reflete exatamente no valor agregado”, afirma.
Então como deixar o carro mais barato? Pagliarini afirma que é possível reduzir cerca de 3% do preço do carro com outras simplificações. “Isso seria um carro sem calota, para-choque preto, sem frisos e com estofamento mais simples”.
Ainda segundo o sócio da Bright, o governo pode “contribuir” com mais 3% reduzindo os impostos. Segundo a Anfavea, a associação das fabricantes, a fatia dos impostos no preço de um carro novo varia de 24,7% a 32,3% -- a menor faixa é exatamente aquela dos modelos 1.0.
Desses 24,7%, 5,27% são referentes ao Imposto sobre Produtos Industrializados, IPI. Carros mais eficientes ainda conseguem um abatimento de 2 pontos porcentuais. Assim, a margem de redução é de 3,7 pontos percentuais.
Quanto custaria o "novo carro popular"?
Calculadora à mão, hora das contas. Partindo dos R$ 68.990 e subtraindo 3% da redução da indústria e outros 3,7% do hipotético IPI zerado, chegamos a R$ 64.444 - ainda acima dos R$ 60 mil que o governo quer estabelecer como teto.
Uma opção considerada essencial pelos dois especialistas ouvidos por Autoesporte seria finalmente promover a reforma tributária no Brasil.
“Produzir no Brasil tem um pênalti, que são os impostos em cascata. A fabricante do parafuso paga imposto. Depois, o sistema de freios que utiliza esse mesmo parafuso também paga um novo imposto e assim por diante. Há algumas reduções, mas não é total”, disse Gustavo Lima.
Porém, é pouco provável que o governo consiga promover a reforma tributária a tempo de anunciar o programa do novo carro popular.
Assim, algumas das alternativas restantes seriam diminuir a margem de lucro ou reduzir a lista de equipamentos de conforto, ainda que isso possa assustar parte do público.
Pagamento facilitado
Mesmo se os preços baixarem, pagar um carro novo ainda é problema para grande parte da população. Com os juros altos - o Banco Central manteve a taxa básica do Brasil em 13,75% - entre as mais elevadas do mundo, o crédito fica mais restrito e menos gente consegue financiar um veículo. Pior, quem consegue paga mais caro.
Por isso, outro ponto crucial é facilitar o pagamento - e nesse ponto ainda há indefinições. Segundo Pagliarini, uma das opções seria usar parte do FGTS dos trabalhadores como parte do pagamento. Assim, o fundo poderia ser reposto com juros mais baixos do que aquele cobrado pelos bancos.
Carro popular é menos lucrativo
A volta do carro popular é uma forma de tentar alavancar a indústria automotiva após anos de pandemia. Apesar de as vendas estarem subindo na comparação com o ano passado, as fabricantes reclamam que o nível é consideravelmente mais baixo do que em 2019 - 26,5% mais precisamente.
Por outro lado, os carros de entrada não são exatamente os mais rentáveis para quem produz. É por isso que modelos mais simples deixaram de existir. A Chevrolet já disse que modelos mais baratos não são a prioridade. O Celta foi o último considerado popular da fabricante.
“As montadoras mudaram o perfil dos portfólios para modelos que dão mais lucro. Fazer o carro de entrada seria interessante e geraria interesse, mas reduziria a margem”, disse Lima.
O especialista em manufatura aponta outras formas de reduzir o preço do carro que podem ser aplicadas não apenas nos modelos de entrada. Um deles é trazer os fornecedores de componentes para mais perto das fábricas. Muitas fabricantes já fazem isso, mas o exemplo citado por Lima é ainda mais extremo. “É como a Volkswagen Caminhões fez na fábrica de Resende (RJ), levando para dentro da própria fábrica os fornecedores. Isso gera uma logística mais assertiva e reduz parte dos gastos da cadeia.
Outra alternativa é aumentar o índice de nacionalização dos veículos. “Uma questão que ajudaria é trazer um percentual grande de fabricação de componentes eletrônicos, que hoje passa por um oligopólio global. O Brasil tem expertise, mas não tem a indústria estabelecida. Com a pandemia, essa cadeia ficou muito mais cara. Isso pode reduzir custos e, por consequência, o preço dos carros”, completa.
Porém, esses são fatores que exigem planejamento mais longo e investimentos. Por isso, ainda que comecem a ser aplicados já, só dariam resultados dentro de alguns anos.
E-mail: [email protected]
Telefone: (82) 9-9672-7222