Nos olhos, escuridão. Nos ouvidos, silêncio! O que poderia ter sido empecilho foi determinação para fazer história, ser pioneiro. Juciê Feitosa está prestes a ser o primeiro aluno surdocego a concluir uma graduação na Universidade Federal de Alagoas. Ele já apresentou o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e será diplomado bacharel em Administração, pelo Campus Arapiraca.
“Ser o primeiro é sempre muito desafiador em todos os sentidos, você tem que lutar por cada coisa e abrir o caminho que ninguém nunca passou, então, é um desafio enorme pelas barreiras que tive que enfrentar: de falta de conhecimento sobre a surdocegueira, de falta de acessibilidade de modo geral, de falta de normatização específica para casos como o meu, além dos próprios desafios de enfrentar uma graduação tendo passado por tanta omissão durante a maior parte da minha vida escolar”, contou.
Juciê apresentou o TCC no último mês de setembro e, muito mais do que a aprovação, ganhou o respeito e a admiração da banca. “É extremamente gratificante poder contribuir com a conquista de um aluno tão esforçado e que não se deixou abalar pelas dificuldades que o cercavam”, ressaltou seu orientador, Fabiano Santana.
De mãos dadas à Juciê, literalmente, estava uma das responsáveis por essa conquista: sua irmã, Vanessa Feitosa, que foi olhos, ouvidos e boca quando necessário e, coração e emoção desde sempre. “Um misto de todos os sentimentos, mas os principais foram gratidão, orgulho e o de dever cumprido, com toda certeza”, desabafou Vanessa, ao lembrar o quanto foi longa a jornada dos dois:
“Tradução/interpretação através de Libras-tátil e guia para todos os lugares dentro do campus, além de apoio para que toda a acessibilidade que ele necessitava, além de mim, fosse atendida, sempre em contato com os setores administrativos, docentes e coordenação do curso, além da direção do campus. Também o acompanhei no estágio na empresa e em todas as visitas técnicas feitas pela turma”.
Entre obstáculos e conquistas, a espera pelo diploma tem muitos significados para o aluno da Ufal: “Conseguir ver o quanto sou capaz, mostrar pra as outras pessoas que é possível superar todos os desafios que enfrentei e sentir que consegui e que pessoas acreditaram em mim e me apoiaram também”.
Um passo de cada vez
Não tem como conhecer a história de Juciê e não se emocionar. O menino que já nasceu surdo foi inspiração, primeiro, dentro da própria família. Aos sete anos começou a estudar numa sala especial apenas com surdos de todas as idades, aprendeu Libras e ensinou a irmã. A necessidade da comunicação fez a mãe aprender o idioma do filho e se tornar professora de surdos no projeto Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Cercado de apoio em casa, ele ainda tinha o mundo lá fora para encarar. “Enfrentei muitas dificuldades para concluir meus estudos porque, por muitas vezes, fiquei sem intérprete de Libras em sala, contando com a colaboração de colegas que acabavam aprendendo alguma coisa porque eu ensinava. Até então, eu era apenas surdo e usava óculos de grau”, contou.
Ainda no ensino médio foi detectado que Juciê já havia perdido aproximadamente 80% da visão por meio da morte e atrofia de células oculares. Essa foi mais uma barreira a atravessar, mas jamais o impeditivo de arriscar deixar a família em Arapiraca e morar sozinho em Maceió para cursar Letras-Libras na Ufal.
“Cursei até o terceiro período. Todavia, como estava fora o meu domicílio acabei não conseguindo continuar por questões de acessibilidade e segurança. Depois de muito tentar alternativas para continuar meu curso inicial, chegamos à conclusão que era necessário migrar para um curso em Arapiraca, para que eu ficasse junto à minha família”, contou, explicando que foi assim que optou pela graduação em Administração à medida que perdia totalmente a visão.
Mundo novo cheio de oportunidades e acolhimento
A chegada ao curso no Campus Arapiraca foi marcada por mais desafios. O professor Fabiano Santana conta que tentava conduzir as aulas num ritmo que fosse adequado para Juciê e que não comprometesse o conteúdo. Mas a experiência nova para o docente revelou todo o potencial que seu aluno poderia ter.
“Ele sempre foi muito determinado e não queria ser beneficiado por conta da deficiência. As atividades e provas eram as mesmas que os demais colegas. Ele sempre fez questão de ter o mesmo tratamento para poder valorizar o seu diploma”, disse.
Juciê ainda esbarrou em obstáculos como a ausência de um profissional para acompanhar em sala e a aquisição de um computador especial, que só ocorreu na metade do curso. Durante a pandemia o trabalho de orientação para o TCC ficou comprometido e, sua irmã, que apoiava nesse processo, precisou se afastar um pouco para se dedicar à sua nova missão de gestante e puérpera.
Mas a mesma relação de confiança e segurança que ele tem com a irmã conseguiu encontrar em várias outras pessoas que cruzaram seu caminho ao longo da vida acadêmica na Ufal. “Principalmente me auxiliando com a acessibilidade que eu precisava e acreditando em mim. A direção do campus sempre me apoiou e tentou fazer o possível para que eu tivesse o que precisava, os meus bolsistas apoiadores Welder e Manuela, do Núcleo de Acessibilidade da Ufal, eram imprescindíveis, meus colegas de turma, as monitoras Tamires e Paula, das disciplinas de exatas, docentes como Ademária, Fabiano, Emanuelle, Maria Amélia entre outros, os intérpretes Luanna e Valdir, além de minha irmã”, nominou, em tom de gratidão: “As pessoas que passam tentando somar, sem nos limitar, sempre contribuem de alguma forma”.
Administração por amor e confiança no futuro
A escolha do curso deu espaço para dedicar o estudo às reflexões sobre o mercado de trabalho para a pessoa surdocega. “É um tema que ainda necessita de muita pesquisa, discussão e contribuições, porque é extremamente desconhecido e pouco falado, o que gera preconceito”, comentou, acrescentando sobre os avanços:
“A Lei de Cotas para o mercado de trabalho, sem dúvidas, foi um ganho significativo nos direitos da pessoa com deficiência, mas há muito o que se fazer, um longo caminho a percorrer para que a vida da pessoa surdocega seja vista como um todo, assim como todo o percurso de escolarização e profissionalização, para que possamos chegar ao mercado de trabalho e competir, até mesmo com outras pessoas com deficiência. A Lei de Cotas, apenas, não garante emprego”.
Além de irmão e colaboradora oficial na construção do TCC de Juciê, Vanessa é servidora da Ufal no Núcleo de Acessibilidade (NAC) do Campus Arapiraca. Engajada em ações afirmativas e militante na comunidade surda, o trabalho no NAC aumentou o contato dela com outros tipos de deficiência. Para Vanessa, a conclusão do curso de Juciê é o impulso para muitas outras conquistas.
“Esperamos que as pessoas consigam ter acesso à informação de que a Universidade é, sim, lugar de todos, incluindo as pessoas com surdocegueira, que sua limitação visual e auditiva não deve impedir de ter sonhos, objetivos e ir em busca dos mesmos. Torço para que, com informação, o preconceito e a estigmatização referentes a esse público ao menos sofra um abalo considerável. Sabemos que tudo é um processo e que demos os primeiros passos”, reforçou.
Falta pouco para Juciê sair da Ufal com o diploma e com uma lição: “Que eu consigo, que sou capaz, que mesmo com minhas limitações e todas as barreiras que enfrentei para minha acessibilidade, permanência e sucesso no curso não tive um resultado negativo em nenhuma disciplina, o que já faz me sentir vitorioso!”
Agora Juciê Feitosa renovou seus sonhos: passar num concurso público para trabalhar na área de formação. Depois de conhecer toda essa história, quem duvida que ele vai conseguir?
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