Especialista independente da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero, Victor Madrigal afirma que o uso político do tema LGBTI é um risco em todo o mundo. Ele acredita que, apesar dos avanços de direitos nos últimos anos, há perigo de retrocessos e caberá ao Judiciário garantir a continuidade das conquistas.
Nascido na Costa Rica, com 50 anos de idade e um mandato que vai até 2023, Madrigal esteve no Brasil durante evento promovido pelo Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos, de Washington (EUA), para divulgar seu mandato, propor soluções e coletar denúncias.
Com três anos de trabalho na ONU, o especialista vê avanços na Índia, África e Caribe e também na Colômbia, Argentina, Uruguai e Brasil, mas alerta que dois bilhões de pessoas ainda vivem em países onde a homossexualidade é crime:
“São cerca de 100 milhões de pessoas que são criminalizadas apenas por serem quem são.”
O tema LGBTI está ganhando relevância em países como o Brasil?
Eu penso que o tema está ganhando relevância em nível global. A questão da orientação sexual e da identidade de gênero, com as consequências nas pessoas que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais e transexuais, sempre existiu. O que ganha importância cada vez mais em nível internacional é o reconhecimento de que a orientação sexual e a identidade de gênero são critérios necessários para compreender como a discriminação e a violência se manifestam na vida dessas pessoas.
Há uma onda conservadora que ameaça os avanços das pessoas LGBTI no mundo?
Numa avaliação global, eu diria que continuam existindo avanços e, com eles, mais visibilidade e mais ocupação dos espaços públicos e, em alguns casos, isso provoca reações. Apesar dos avanços, atualmente 70 países ainda criminalizam a homossexualidade. Neles vivem 2 bilhões de pessoas. Se levarmos em conta que 5% das pessoas são LGBTI, as estimativas internacionais variam de 4% a 8%, estamos falando de cem milhões de pessoas que são criminalizadas apenas por serem quem são. Mas ocorreram avanços muito importantes nos últimos dois anos, a Corte Suprema da Índia eliminou as disposições que criminalizam a homossexualidade há 18 meses, a Justiça de Botsuana e de Trinidad & Tobago fizeram o mesmo.E continuam a ocorrer avanços importantes. Mas há alguns retrocessos, tendências e narrativas que promovem a ideia errada de que esses avanços farão mudanças nefastas na sociedade e, obviamente, não é assim. E para isso, há o papel fundamental de salvaguardar os direito humanos.
O Judiciário pode evitar retrocessos?
Para mim, em todo o estado democrático um dos pilares fundamentais para assegurar a essência da democracia é o papel do poder Judiciário, como garantidor dos direitos humanos e dos direitos da minoria.
Qual o objetivo desta sua visita ao Brasil?
Divulgar informações sobre o meu mandato, e colocá-lo à disposição de todos os atores sociais, incluindo as forças vivas da sociedade, para a assessoria técnica e comparativa que podemos dar. Estive com diferentes grupos sociais, espero continuar encontrando estes grupos, e escutar as diferentes visões sobre o tema. O mandato é relativamente novo, alguns mandatos da ONU tem 30 anos, mas este acabou de cumprir seu terceiro ano. Então não é estranho que exista desconhecimento sobre ele. Este mandato tem funções muito importantes, como assessorar, indicar recomendações. Outra tarefa é avaliar situações específicas . É importante que se conheça que qualquer ator social, governamental ou não, pode nos buscar para pedir critérios e assessorias a respeito de situações particulares. Isso pode ser para política pública, leis, questões judiciárias ou às forças da sociedade civil. Até agora o mandato já recebeu diversos casos ao redor do mundo. Do Brasil, temos o caso de Marielle Franco, que está sendo analisado conjuntamente com outros especialistas independentes da ONU.
O senhor não pode comentar a fundo o caso brasileiro, pois ainda não fez um relatório sobre o país. Mas como vê os líderes do movimento LGBTI que indicam piora na situação desta população no país?
De novo, eu não posso avaliar a situação do Brasi, antes de falar com todos os atores. O mais importante é que o mandato seja aberto ao conhecimento e ao diálogo, dentro de certos limites. Os nossos limites, por exemplo, é que não estamos dispostos a discutir a criminalização da homossexualidade, nem se é válida a discriminação baseada em identidade de gênero, pois são pontos bem assentados nos direitos humanos internacionais.
No Brasil não há estatísticas oficiais sobre agressões, ataques ou preconceito contra populações LGBTI. Como solucionar?
Há um aforismo que diz que “o que não se conta, não existe. E o que não existe nas estatísticas não existe”. Acredito que historicamente existe, parte por desconhecimento, parte por vontade, uma resistência a buscar informações relacionada à violência e discriminação baseada em orientação sexual e identidade de gênero. Isso é um problema generalizado. Mas alguns dos esforços deste momento no Brasil, são os diagnósticos sobre o sistema penitenciário e a situação das pessoas LGBTI. São esforços importantíssimos. Mas tem que haver uma vontade política de reconhecer que a orientação sexual e a identidade de gênero são pontos de vista metodologicamente necessários se se quer combatir a violência e a discriminação. Ou seja, sem esta informação, não se conseguirá combater, de maneira efetiva, a violência e a discriminação. Com a vontade política isso se permeia entre as instituições. E há coisas importantes, como garantir que estas informações não serão utilizadas para perseguir as pessoas que as fornece. Ela precisa estar sujeita a boas práticas em sua arrecadação e gestão e, por último, causar consequências em políticas públicas.
É possivel criar estes sistemas estatísticos?
Sim. Em todo país que se procurou estas informações com estes critérios se conseguiu reduzir a discriminação e a violência e se criaram sociedades mais inclusivas, igualitárias e harmônicas. E não se pode criar um bom sistema de dados sem a participação das populações afetadas. Grandes avanços ocorreram na União Europeia, com muitos esforços na última década. Mas isso não existe apenas nos países do Norte, que são ricos. Colômbia é um país que está avançando nisso rapidamente, como Argentina e Uruguai também, principalmente na questão das mulheres transsexuais, com bons resultados de políticas públicas. No Brasil há algumas boas práticas, com um trabalho fantástico para obter informações sobre o setor de saúde que pode servir de exemplo para outras nações.
O Brasil vem conseguindo um grande avanço na luta contra a violência contra a mulher, em iniciativas como a Lei Maria da Penha. É possível repetir a estratégia para as populações LGBTI?
É uma pergunta muito interessante. Eu era funcionário da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Costa Rica, quando esta questão surgiu e conheço bem este caso. Mas não sei se é possível criar algo semelhante para a população LGBTI do Brasil. A Lei é uma boa resposta em algumas circunstâncias. O que tornou a Lei Maria da Penha um feito extraordinário é que existiu todo um aparato de políticas públicas que acompanharam a lei. Foram várias circunstâncias que confluíram, a maturidade do tema na sociedade, a vontade política de enfrentar a questão com um aparato que não era apenas legal, mas também de políticas públicas, e um esforço de implementação em toda a estrutura estatal. A contribuição do sistema internacional também foi importante, pois tudo surgiu a partir de um acordo amistoso na Corte. Não sei se esta série de fatores estão presentes na temática LGBTI no Brasil. O que eu sei é que a lei, unicamente, por si só, não produz este tipo de mudança social. Tem que ser uma confluência de fatores. Tenho que confiar que, a grande maioria das pessoas, se conhecesse as dificuldades que as pessoas LGBTI enfrentam em sua vida diária para simplesmente existir, criar famílias e aportar tudo o que tem a aportar na sociedade, estaria imeditatamente e de forma voluntária, disposta a fazer as mudanças necessárias.
Que tipo de dificuldades poderiam tocar a maioria das pessoas?
Mulheres lésbicas que vão a um centro de saúde em que a primeira pergunta que fazem a levam a sair do local, não voltar, e depois de cinco anos morrer de câncer. A realidade do homem gay que não é convidado para uma entrevista de trabalho, simplesmente porque se descobre que ele é gay ou a mulher trans que não tem acesso a um emprego ou a uma casa, porque seus documentos não correspondem à sua identidade. Por isso, a importância do meu mandato, para dar visibilidade a essas pessoas.
O senhor diz que há três caminhos para piorar a vida das pessoas LGBTI: a criminalização, a patologização e a demonização. Como está a América Latina nisso?
Estes instrumentos sempre existiram para promover a discriminação e violência em todo o mundo. Isso Isso condenaria as pessoas a nascerem delinquentes. E há casos de criminalização inerente, em contextos que, mesmo que as leis não criminalize efetivamente a homossexualidade, há leis que tratam da moral pública usualmente utilizadas para criminalizar a existência das pessoas LGBTI. O segundo é a patologização. Parte do fato que, por muitas décadas, a homossexualidade foi considerada uma doença mental internacionalmente. A partir dos anos 80 se começou a despatologizar a existência LGBTI com a eliminação destas tipologias das classificações internacionais de doenças. Atualmente em todo o mundo há grandes problemas sobre terapias de conversão, a chamada cura gay, que afeta centenas de mlhares de pessoas que passam por tratamentos que vão até as formas mais terríveis de tortura. Incluem estupro erroneamente chamado de “corretivo”, eletrochoques, drogas.Há a pessoas que chegam ser assassinadas por seus grupos familimiares por acreditarem que estavam muito doente. E por último há a demonização, a utilização da religião com o propósito de interpretar que estas pessoas são de alguma maneira pecaminosas e antissociais. Isso não tem base em nenhum pensamento realmente religioso. Trabalho com centenas de grupos religioso que pregam, corretamente, a inclusão destas pessoas.
No Brasil, grupos religiosos e políticos lutam para garantir o direito de criticar a orientação sexual dentro dos templos, com o argumento da liberdade religiosa….
O marco internacional dos direitos humanos. é muito bem estabelecido, atrás de séculos de reflexão, que e reconhece que a liberdade religiosa é um dos mais fundamentais direitos humanos, não há nenhuma dúvida a respeito disso. Quais são os limites da liberdade religiosa? Não fazer mal aos demais, não infligir danos aos direitos humanos das outras pessoas. Do meu ponto de vista, há uma harmonia perfeita entre o direito da liberdade religiosa e o direito de viver sem violência.
A participação política das pessoas LGBTI é um outro desafio que precisa ser alcançado?
Para mim é essencial que exista representação política que reflita a formação real da sociedade. Celebramos os precurssores, o primeiro-ministro gay, a primeira senadora lésbica, etc, em todo o mundo, e fazemos o mesmo no Brasil. Mas não porque isso é uma conquista emblemática, mas porqu reflete a realidade social. As identidades gays, lésbicas, trans não são apenas condutas sexuais, são identidades políticas e ocupar o espaço tem importância fundamental. Por isso ficamos tão preocupados com o caso Marielle Franco, pois a mensagem foi muito nefasta.
Nos últimos anos vimos aumentar, no debate política, o tema LGBTI. Como o senhor vê isso?
Entre os riscos de regressão dos direitos das pessoas LGBTI, no mundo, eu noto uma tendência da utilização da temática LGBTI dentro dos processos eleitorais, em especial em momentos de crises políticas ou econômicas. Isso tem ocorrido em todo o mundo. E essa instrumentalização da temática LGBTI tende a polarizar um diálogo político que não está baseado em critérios reais. No mundo se dirigiram campanhas políticas completas, em países que tem problemas sociais terríveis, como se o único problema fosse o casamento gay. Esta instrumentalização é algo que precisamos tomar consciência, pois coloca em risco toda uma população que não merece isso.
Como o senhor vê o futuro? Como estará a população LGBTI em dez, quinze anos?
Não apenas na América Latina, mas em todo o mundo, precisamos compreender que há possibilidade real de retrocessos. Infelizmente a História da humanidade nos mostra que não é a regra que as pessoas vivam em pleno uso de seus direitos. A História nos mostra que é fácil se esquecer do passado. Através da nossa geração temos a evidência que a mudança social é possível. Eu nasci em um momento no qual as pessoas homossexuais eram entendidas, na maior parte do mundo, como doentes, delinquentes ou pecaminosas. Isso mudou na última geração. E hoje, na maior parte do mundo, as pessoas têm o direito de serem livres e iguais. Acredito que mudança social é possível, há maior aceitação, maior claridade, mais inclusão social e por isso é importante ter otimismo, vimos que é possível mudar a sociedade, mas com muita cautela. Temos que ser otimistas com cautela.
Qual sua avaliação do Brasil? O país pode ter um relatório específico seu?
Todos os países são importantes para mim. Mas claro que, por questões como a população, a clara liderança regional e a riqueza cultural, Brasil é um país com um potencial extraoridnário. E tem todo o meu interesse e minha ênfases. Até agora não defini uma visita oficial ao Brasil (que geraria um relatório), mas esta é uma possibilidade.
Fonte: O Globo
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