Com sorriso largo e batom em tom de rosa, Madalena Gordiano, a doméstica resgatada há oito meses após 38 anos de trabalho análogo à escravidão em Patos de Minas, a 415 km de Belo Horizonte, conta a novidade enquanto enrola as mechas do novo cabelo em um dos dedos.
— Estou lançando um livro.
A obra prevista para o fim deste ano vai detalhar a história da mulher que foi alçada a símbolo da luta contra o trabalho escravo no país, além de fazer um resgate histórico da servidão de negros no Brasil desde a colonização.
O livro está sendo escrito pelo economista José Humberto Fernandes, um dos tutores de Madá, como é conhecida, desde que ela foi retirada da antiga casa dos patrões em uma operação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal.
— A princípio era muito difícil para ela falar da própria vida com a psicóloga. Então, conversamos com a Madalena sobre a possibilidade de se escrever o livro, o que seria uma forma de despertar a vontade dela de se mostrar. Passamos algumas manhãs de sábados juntos. Eu perguntando e ela falando. Assim, exercitamos a vontade dela de relembrar sua vida.
Fernandes pretende misturar um pouco de ficção para relatar como a escravidão chegou ao Brasil e como deixou traços em situações cotidianas atualmente. Uma das personagens do enredo vai ser a menina Madá, inspirada na boneca de pano que a ex-doméstica ganhou ao iniciar a nova vida.
— As pessoas ainda permanecem com um conceito antigo que dar um prato de comida para alguém não é bondade, e sim uma troca por trabalho. Não pode ser desta forma. Eu vou mostrar isto no livro.
Vida nova
Enquanto a obra é produzida, a Madá da vida real começa a construir uma história em liberdade. Aos 47 anos, muitas experiências ainda são novas para ela.
— Meu cabelo é curto, mas agora eu estou colocando ele grande. Também estou fazendo as minhas unhas todos os meses, me maquio, estou na academia e danço zumba. As pernas até doem, mas é bom.
A doméstica que chegou à casa de Maria das Graças Rigueira aos 8 anos após bater na porta para pedir pão, passou alguns dias em Paraty, no Rio de Janeiro, no início deste mês. Ela já havia visitado o litoral com os antigos patrões, mas desta vez foi diferente.
— Da outra vez, eu fui para trabalhar e nem vi o mar. Agora, eu fui para nadar, tirar foto, pegar conchinha e brincar com a areia.
José Humberto Fernandes conta que ele e a esposa têm feito viagens com Madalena para estimular o desenvolvimento dela, além de proporcionar o lazer que praticamente não existiu nos últimos 38 anos. Em cada destino, o entusiasmo fala alto.
— A Madalena vivia em um quartinho com uma caixa de papelão para guardar os pertences, em uma situação muito dramática de espaço. Quando chegamos à entrada do hotel em Brasília, ela disse que a casa dela deveria ser construída daquela forma. Em Paraty, já mudou de ideia e disse que queria se mudar para lá.
Ao R7, no entanto, a resgatada contou que pretende ficar em Uberaba, onde passou os últimos meses. A ideia é comprar uma casa com o valor que vai receber da venda do apartamento que ganhou no acordo de indenização que fechou com a família Rigueira.
— Eu vou vendê-lo porque tenho muitas recordações lá. Eu não tinha liberdade de nada. Não podia falar nada. Se eu saísse, tinha que voltar.
Educação e família
Com apenas o terceiro ano do ensino fundamental completo, Madalena retomou os estudos com aulas de português e matemática oferecidas por uma professora particular. A ex-doméstica pretende voltar à escola após a pandemia para conseguir se formar em enfermagem.
Outro compromisso da lista de projetos é reatar a convivência com os irmãos, entre eles sua irmã gêmea. Madá nasceu em uma família com nove filhos, em São Miguel do Anta, a 249 km de Belo Horizonte. Todas as sete mulheres foram dadas a outras pessoas. Apenas os filhos homens ficaram em casa.
— Meu plano agora é arrumar a minha casinha, conhecer a minha família e depois passear. Vou para o Rio de Janeiro e várias praias. E o resto, bola pra frente! Agora vou para qualquer lugar que eu quiser.
Ações
O professor universitário Dalton Rigueira também passou para Madalena um carro modelo SUV com valor estimado em R$ 70 mil no acordo homologado pela Justiça na última semana.
Uma das cláusulas indica que a tratativa não serve como confissão de submissão a trabalho análogo à escravidão e nem dispensa o educador de responder criminalmente sobre as práticas.
O MPF (Ministério Público Federal) acompanha o caso. A reportagem procurou a defesa da família Rigueira para comentar as denúncias, mas aguarda retorno.
Fonte: R7
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