A Fifa quer redesenhar o calendário do futebol mundial: menos amistosos entre seleções, Eliminatórias mais curtas e... a Copa do Mundo a cada dois anos, não mais a cada quatro anos. O mentor da proposta é o francês Arsène Wenger, de 71 anos, vinte e dois deles à frente do Arsenal. O plano recebeu críticas pesadas do presidente da Uefa, Aleksander Ceferin, mas por outro lado foi elogiado por gente como Pep Guardiola.
Desde novembro de 2019 Arsène Wenger ocupa o cargo de Chefe Global de Desenvolvimento de Futebol da Fifa. Nesta entrevista exclusiva ao ge, concedida por e-mail, Wenger explica os fundamentos de sua proposta, rebate educadamente as críticas e admite que o calendário atual "é um caos". A seguir, os principais trechos da entrevista.
O senhor trabalha para a Fifa há dois anos, depois de 35 anos dirigindo clubes. O que o senhor descobriu sobre futebol que ainda não sabia?
- Descobri que o desenvolvimento do futebol é muito desigual em todo o mundo e nem todos têm as mesmas oportunidades. Garotos e garotas na Europa Ocidental têm um ambiente fantástico para desenvolver o seu talento em termos de estrutura, treinadores, programas de treino e competições. Mas este não é o caso na maior parte do mundo. Existem muitos talentos que provavelmente nunca chegarão ao topo simplesmente porque nasceram em um lugar diferente. Em minha função na Fifa, a prioridade é enfrentar esse problema.
É natural que a proposta de reforma do calendário feita pela Fifa atraia mais atenção para a Copa do Mundo a cada dois anos. Mas antes de entrar no assunto: o que é mais importante aí?
- O ponto de partida da minha reflexão é tentar melhorar a forma como o futebol internacional é organizado, para torná-lo melhor. Todos concordam que o sistema atual não está funcionando, é um caos, com multiplicação de jogos – alguns deles não muito importantes para os torcedores – interrupções constantes entre as competições de clubes e seleções, e uma pressão cada vez maior sobre os jogadores, principalmente em viagens internacionais. Há um consenso na comunidade do futebol de que o calendário de jogos internacionais deve ser reformado e aprimorado.
O que o senhor propõe?
- Minha proposta é deixar o calendário mais simples, claro e focar em competições que sejam realmente significativas, pois é isso que jogadores e torcedores querem. Isso significa menos jogos, mas melhores jogos, e mantendo a proporção de antes: 80% da temporada para competições de clubes e 20% para competições de seleções. Com base nisso, minha proposta é reagrupar as Eliminatórias em apenas uma ou duas janelas internacionais. No resto da temporada os jogadores permaneceriam em seus clubes. Isso significaria menos interrupções para os clubes, menos viagens para os jogadores e uma separação clara entre competições de clubes e seleções, tornando mais fácil para os torcedores acompanharem e interagirem. Com menos dias para as Eliminatórias internacionais ao longo do ano, também abriria espaço para uma grande competição no final da temporada, seja uma Copa do Mundo ou uma disputa continental como a Copa América, por exemplo. E depois disso haveria um período de descanso obrigatório – na minha proposta seriam 25 dias – antes de os jogadores começarem a nova temporada da liga.
A Europa ganhou as quatro últimas Copas e os quatro últimos Mundiais de Clubes. Como a distância para os outros continentes pode ser reduzida?
- Um dos principais objetivos dessa reforma é melhorar o futebol globalmente e tentar torná-lo mais competitivo. Como você diz, com razão, o fosso entre a Europa e o resto do mundo só aumentou nos últimos anos. Queremos tentar preencher essa lacuna. Uma maneira é melhorar o desenvolvimento de talentos em todos os países, mas a organização de competições mais regulares também é uma forma poderosa de melhorar o desempenho. Existem 211 associados à Fifa e 133 delas nunca participaram de uma Copa do Mundo. Se organizarmos Copas e competições continentais com mais frequência, daremos a eles mais chances de participar – o que, por sua vez, daria a eles mais incentivo para investir no desenvolvimento dos jovens.
O senhor acredita que existe um formato ideal para o Mundial de Clubes?
- Neste momento, o nosso foco principal é a forma de melhorar as competições de seleções nacionais.
Uma reclamação muito comum aqui no Brasil é que, após a criação da Liga das Nações da Uefa, não há mais jogos contra europeus, exceto na Copa do Mundo. O novo calendário resolveria esse problema?
- Uma Copa do Mundo mais frequente significaria mais oportunidades para os melhores times sul-americanos jogarem contra os melhores europeus, e não apenas em amistosos, mas em jogos realmente significativos, no palco principal. E isso vale também para seleções africanas, asiáticas, norte e centro-americanas, da Oceania. Todos terão mais chances de competir no nível mais alto.
As quatro ou cinco semanas reservadas para duelos entre seleções nacionais seriam suficientes para acomodar as Eliminatórias da Copa do Mundo? Ainda haveria espaço para jogos amistosos?
- Se você reagrupar as Eliminatórias em uma ou duas janelas, perderá menos dias em viagens, como vemos atualmente com essas interrupções constantes, e o formato das Eliminatórias teria que ser diferente. Isso caberia às confederações pensar e se adaptar. Haveria tempo para as Eliminatórias e, no final da temporada, a grande final da competição, seja Copa do Mundo ou campeonato continental. Quando eu era jovem, os amistosos eram jogos importantes, mas hoje em dia eles perderam muito o interesse dos jogadores e fãs, então minha proposta é substituí-los por jogos realmente significativos.
As seleções não chegariam para a Copa do Mundo com pouco tempo para treinar e jogar juntas?
- Ainda haveria o mesmo tempo de preparação antes das competições finais que temos hoje, mas além disso, se reagruparmos as Eliminatórias em uma ou duas janelas mais longas, isso daria aos treinadores da seleção nacional uma chance muito melhor de realmente trabalhar e desenvolver seus times, algo que atualmente não é possível, pois eles têm seus jogadores apenas por alguns dias antes de cada partida.
Especificamente no caso da América do Sul, com a Copa do Mundo ampliada para 48 seleções, é certo que a maioria das seleções se classifica. Como tornar as Eliminatórias interessantes?
- O calendário definirá janelas para jogos internacionais e, em seguida, caberá a cada confederação organizar suas eliminatórias. Haveria muitas possibilidades diferentes.
Poderia haver algum tipo de "Eliminatórias Globais" para a Copa do Mundo?
- Esse é o tipo de detalhe que precisaria ser discutido em um estágio posterior.
O senhor não teme o risco de que uma Copa do Mundo com 48 seleções e disputada a cada dois anos dê uma sensação de "overdose"? De "muita Copa do Mundo?" Pergunto no sentido de tornar comum, banal, o que sempre foi muito raro e especial.
- Posso entender essas preocupações mas, honestamente, não acho que isso aconteceria. O prestígio de uma competição está ligado à sua qualidade, não à distância entre cada edição. Veja a Champions League, é muito prestigiosa e ainda assim acontece todos os anos. A Copa do Mundo ainda seria a Copa do Mundo, ainda são as melhores seleções do mundo competindo entre si em uma competição eliminatória. É isso que os torcedores querem ver, é isso que os jogadores querem jogar, no lugar de amistosos e outras competições que perderam sentido.
Parte da magia de uma Copa do Mundo para um jogador não está no fato de que a competição raramente cruza seu caminho ao longo de sua vida esportiva? Isso não se perderá com a nova proposta?
- Você pode ver o contrário: quando um jogador se machuca com a Copa do Mundo a cada quatro anos, pode não ter outra oportunidade de competir nela novamente. Posso dizer que não há mágica nisso. Já falei com muitos jogadores sobre este projeto e a grande maioria realmente vê isso como uma oportunidade fantástica de poder competir com mais regularidade no mais alto nível e desfrutar da competição que eles veem como o ápice da carreira de um jogador. Ronaldo ou Roberto Carlos, por exemplo, são dois ex-grandes jogadores que concordam com isso.
O presidente da Uefa afirmou que a Copa do Mundo a cada dois anos "mataria o futebol". O que o senhor acha desta opinião?
- Aceito todas as críticas e posso entender que algumas pessoas tenham uma reação forte, mas acho que muitas pessoas que eram totalmente contra isso mudaram de ideia depois de ver a proposta completa. Acho que algumas pessoas só reagem à ideia de uma Copa do Mundo a cada dois anos sem ver o quadro completo. Eles acham que estamos propondo mais jogos, mas, novamente, minha ideia é reagrupar e reduzir as Eliminatórias e diminuir os amistosos ao mínimo, para que haja menos jogos, mas jogos mais significativos.
O senhor sabia que os torneios do clubes no Brasil não são interrompidos durante as janelas internacionais? O que o senhor acha disso?
- Nesta discussão sobre o calendário não seria correto eu comentar sobre isso nesta fase. Como disse, a minha ideia é estabelecer um calendário muito mais simples, com uma separação clara das competições de clubes e seleções, e isso deve deixar todos felizes: os clubes e as ligas, porque teriam os jogadores disponíveis sem interrupção durante toda a temporada; os jogadores, porque poderiam focar totalmente em cada competição e viajar menos, e os torcedores, porque também poderiam acompanhar uma competição de cada vez.
A América do Sul deve adotar o calendário europeu?
- Para ser honesto, isso está um pouco fora da minha competência. Muitos são os fatores envolvidos nessa decisão e é preciso levar em conta as especificidades de cada região. Meu objetivo é tentar estabelecer um calendário geral que seja muito mais simples e claro e, então, caberia a cada país e região definir as melhores formas de realizar suas próprias competições.
Fonte: Globoesporte.com
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