Neurologistas, pacientes, familiares e associações do mundo inteiro acompanharam com ansiedade uma reunião realizada no dia 6 de novembro pelo Food and Drug Administration (FDA), a agência responsável por aprovar e regular os medicamentos nos Estados Unidos.
A pauta do encontro era a avaliação do aducanumabe, medicamento criado para tratar o Alzheimer, um dos tipos de demência mais comuns no mundo.
Desenvolvido pelas farmacêuticas Biogen e Eisai, o remédio é um anticorpo monoclonal aplicado uma vez ao mês por meio de infusões na veia. Se aprovado, ele custaria algumas dezenas de milhares de dólares por dose.
O FDA reuniu um painel de especialistas independentes, para que eles pudessem analisar os resultados dos estudos clínicos e ajudassem a agência a definir se a molécula deveria ser aprovada para prescrição pelos neurologistas.
O resultado do encontro, porém, frustrou as expectativas: após uma série de votações, os experts concluíram que ainda não se sentem convencidos sobre a eficácia do tratamento e não acham que existem evidências suficientes para liberar seu uso.
A decisão, porém, ainda não é definitiva: o FDA voltará a debater o tema em março de 2021, quando finalmente baterá o martelo. Mas, pelos resultados da reunião recente, a tendência é que a medicação seja reprovada e precise passar por novos testes antes de receber o sinal verde.
Marasmo total
Uma notícia positiva sobre o aducanumabe era aguardada com grande expectativa — afinal, a última aprovação de um tratamento contra o Alzheimer aconteceu em 2003, há 17 anos, quando um fármaco chamado memantina chegou ao mercado.
De lá para cá, mais de 240 moléculas diferentes foram testadas, mas nenhuma se mostrou segura e eficaz. A taxa de fracasso supera os 99% e é a maior de todas as especialidades médicas — a título de comparação, na área da oncologia, cerca de 80% das terapias falham durante os testes clínicos.
Para completar o cenário, estima-se que 45 milhões de pessoas tenham algum tipo de demência no mundo (2 milhões delas no Brasil). Com o envelhecimento da população em vários países, esse número deve duplicar a cada 20 anos.
Os tratamentos atuais ajudam a controlar alguns sintomas e até atrasam um pouco a progressão da doença, mas eles se tornam ineficazes nos casos mais graves e avançados.
Mas, afinal, por que é tão difícil criar novos tratamentos contra o Alzheimer? Há uma série de obstáculos e entraves nessa história. E o próprio aducanumabe é um exemplo para ilustrar essa busca infrutífera dos últimos anos.
Esperanças e frustrações
Em meados 2015, o aducanumabe apareceu como uma das grandes promessas contra o Alzheimer. Os estudos de fase 1 chamaram tanta atenção que foram destaque de capa da revista Nature em 2016.
A droga, desenvolvida a partir de células de defesa de idosos que não tinham demência, se mostrou capaz de eliminar uma proteína chamada beta-amiloide no cérebro.
Pelo que se sabe até o momento, essa substância está relacionada de alguma maneira ao início da doença. Com o tempo, ela se acumula do lado de fora dos neurônios e dá início ao processo de perda das memórias e da cognição.
O aducanumabe foi apenas um entre mais de uma dezena de anticorpos monoclonais feitos para frear esse tipo de demência. Nos testes iniciais, vários deles se mostravam capazes de retirar o excesso dessa tal de beta-amiloide da massa cinzenta.
Porém, quando os estudos progrediam para as fases finais, essa "faxina" cerebral não repercutia nos sintomas da doença: os pacientes continuavam a ter prejuízos nas recordações e na capacidade de raciocinar.
Os cientistas suspeitaram, então, que o problema não estava no mecanismo das drogas em si, mas no momento em que elas eram aplicadas.
Talvez os voluntários recrutados para os estudos estivessem numa fase muito adiantada da doença, em que os danos aos neurônios já eram irreversíveis.
Hoje em dia, se sabe que o Alzheimer começa a corroer o cérebro até duas ou três décadas antes de os primeiros sintomas darem as caras. "A beta-amiloide se acumula com grande antecedência aos incômodos de memória", conta o neurologista Fábio Porto, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Portanto, um indivíduo que começa a ter falhas nas lembranças aos 80 anos pode estar num longo processo degenerativo, que começou lá quando ele tinha apenas 50 ou 60 anos.
Seguindo essa lógica, será que usar os anticorpos monoclonais antecipadamente, nessa fase assintomática, ou quando os primeiríssimos sintomas aparecerem, poderia fazer alguma diferença?
Reviravolta surpreendente
Foi justamente para responder a essa pergunta que o aducanumabe foi testado em dois ensaios clínicos de fase 3 (os últimos antes da aprovação) a partir de 2016.
Esses estudos ganharam nomes em inglês: ENGAGE e EMERGE. O primeiro teve a participação de 1.647 voluntários, enquanto o segundo recrutou 1.638 pessoas.
Em março de 2019, os responsáveis pelos trabalhos resolveram fazer uma análise preliminar do progresso até aquele momento, para ver como as coisas estavam evoluindo.
Foi um verdadeiro banho de água fria: os resultados não estavam dentro das expectativas e os estudos foram encerrados antes do prazo.
Sete meses depois, veio a notícia que ninguém esperava: Biogen e Eisai anunciaram que haviam reavaliado as duas pesquisas e encontrado em uma delas evidências de que o aducanumabe poderia, sim, funcionar num determinado grupo de pacientes.
As empresas foram além e disseram que, a partir dos dados, pediriam a aprovação do medicamento para uso clínico nos EUA.
As controvérsias
A mudança de rumos pegou a comunidade científica de surpresa. Afinal, não é comum que pesquisas desse tamanho sejam paralisadas ou reanalisadas no meio do caminho.
"Geralmente, todo o desenho do estudo clínico é definido antes do início. Fazer modificações assim é uma coisa muito complexa, que leva a problemas estatísticos", diz o neurocientista Eduardo Zimmer, professor do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O químico americano Derek Lowe não poupou críticas aos movimentos feitos por Biogen e Eisai. Numa série de textos publicados em seu blog In The Pipeline, no site da revista Science, ele demonstrou desconfiança com os resultados do aducanumabe:
"Eu não acredito que as empresas demonstraram a eficácia [do medicamento]. Eu acho que eles têm capacidade suficiente para fazer um estudo melhor se assim quisessem. Mas eles não querem. Eles desejam ir logo até o FDA para ter a droga aprovada e começarem a imprimir dinheiro".
Os especialistas dizem que, antes de buscar a aprovação nas agências regulatórias, os responsáveis pelo fármaco deveriam fazer um novo estudo de fase 3, que focasse justamente nessas doses mais altas e nesse perfil de pacientes que parece se beneficiar mais do remédio.
O problema é o tempo. "Esses novos testes exigiriam um investimento econômico gigantesco e demorariam mais quatro ou cinco anos para darem os resultados", estima Zimmer, que também é membro da Academia Brasileira de Ciências.
Na reunião que ocorreu no dia 6 de novembro, o painel de especialistas se debruçaram sobre quatro questões principais, que tinham o objetivo de avaliar se as informações disponíveis até o momento sobre o aducanumabe traziam segurança sobre seu uso na prática clínica.
A esmagadora maioria dos participantes deu votos contrários, ou disse que ainda havia muita incerteza sobre o tema.
Curiosamente, dois dias antes do encontro, o próprio FDA havia divulgado um extenso relatório feito por sua equipe de revisores técnicos afirmando que os dados disponibilizados pelas farmacêuticas eram "robustos e excepcionalmente persuasivos".
O outro lado
A BBC Brasil procurou a Biogen para buscar o ponto de vista da farmacêutica. Por meio de sua assessoria de imprensa, a companhia respondeu algumas das perguntas enviadas.
Os responsáveis pelo medicamento defendem que ele tem o potencial de alterar a progressão da doença, desacelerar o declínio cognitivo e beneficiar a capacidade dos pacientes em realizar atividades diárias. "Se aprovado, o aducanumabe seria o primeiro tratamento a alterar significativamente o curso natural do Alzheimer", escrevem.
Questionados se também pretendem pedir a aprovação da terapia no Brasil, o laboratório preferiu não comentar o assunto. "Seremos o mais céleres e diligentes para atender as necessidades sociais e clínicas postas", disseram.
Mais pedras no caminho
A dificuldade em demonstrar o benefício prático de uma nova molécula é apenas a ponta do iceberg desse drama que aflige milhões de pacientes e seus familiares. Pesquisadores da área enfrentam uma série de outras barreiras para entender o Alzheimer e seus desdobramentos.
Para começo de conversa, não existe um modelo animal que permita replicar as características do cérebro humano e da doença de Alzheimer com fidelidade.
Isso dificulta bastante na hora de fazer trabalhos experimentais, ou mesmo entender a ação de novas drogas em cobaias. Esse estágio de pesquisa é essencial antes de que as formulações sejam encaminhadas para testes com seres humanos.
Outra barreira importante está no diagnóstico: atualmente, a detecção do Alzheimer depende de testes muito invasivos ou muito caros.
É o caso, por exemplo, da análise do líquor, uma substância encontrada na medula óssea, ou do PET-CT, um exame de imagem bastante específico. "Esses são métodos ainda pouco acessíveis, por razões técnicas e financeiras", pontua Porto.
Na hora de realizar estudos clínicos, por exemplo, os laboratórios gastam milhões de dólares para garantir que os voluntários façam exames do tipo e conferir se eles realmente têm Alzheimer. Esse investimento maciço é algo que poucos laboratórios conseguem fazer.
Por fim, há muitas dúvidas sobre o mecanismo que está envolvido neste tipo de demência. Ainda existe controvérsia sobre o papel da proteína beta-amiloide na doença e como ela interage com várias substâncias que se alteram no cérebro durante o processo de degeneração, como uma outra proteína conhecida como TAU.
Enquanto esses mistérios permanecerem, é difícil desenvolver tratamentos específicos capazes de atuar em alguma etapa da enfermidade.
Promessas futuras
A reunião definitiva do FDA só acontece em março de 2021. Mas a tendência é que o aducanumabe precise mesmo passar por um novo estudo com milhares de voluntários antes de receber algum tipo de sinalização positiva pelas agências regulatórias.
Mas ele não é o único candidato no páreo: de acordo com o site ClinicalTrials.Gov, mantido pelo governo americano, outros 2.471 testes clínicos com candidatos a remédios contra o Alzheimer estão em andamento neste exato momento.
Um que é acompanhado de perto é o solanezumabe, da Eli Lilly. Ele também atua na proteína beta-amiloide e está sendo avaliado em pacientes com sintomas bem iniciais da enfermidade. Se tudo der certo, seus resultados são esperados para 2023.
Em paralelo, outros grupos de cientistas procuram caminhos criativos para frear a progressão do Alzheimer. Alguns miram na proteína TAU, que aparece nas fases mais avançadas da condição.
Outros vão além e testam terapias à base de luzes ou maneiras de modificar a microbiota intestinal, um conjunto de bactéria que vive no nossa sistema digestivo e parece influenciar até na saúde do cérebro.
Num cenário sem novidades há quase duas décadas, o futuro promete trazer notícias melhores.
Fonte: G1
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