Um homem em situação de rua foi absolvido de uma condenação a seis anos e oito meses de reclusão após o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) acatar um pedido da Defensoria Pública do Estado. Preso desde novembro de 2019, ele havia sido acusado de um assalto com posse de arma de fogo em uma cidade do interior do estado. O órgão alegou que a prisão ocorreu a partir de um procedimento irregular de reconhecimento, o que teria influenciado diretamente na decisão.
Entre a detenção, a sentença e a absolvição, o réu ficou preso por mais de um ano e meio. O homem havia sido reconhecido por características como a cor da pele (negra), o formato fino do rosto e a cor do boné.
De acordo com as próprias vítimas do assalto, o salão de beleza em que trabalham, onde ocorreu o crime, não possuía boa iluminação, e apenas uma das duas conseguiu ver o rosto do assaltante – somente de perfil.
A primeira identificação se deu após uma cliente do salão mostrar ‘prints’ das gravações da câmera de segurança de seu bairro, e a partir deles uma das funcionárias disse tê-lo reconhecido. As duas imagens, às quais a reportagem teve acesso e sem autorização para divulgar, não são do local do crime e têm baixíssima qualidade. Nas capturas de tela, é possível ver apenas a cor da pele e o tipo físico do homem, que aparece em uma rua residencial de mochila e boné. Seu rosto, porém, está bastante embaçado em ambas.
Posteriormente, quando apresentado aos ‘prints’, o réu se reconheceu nas gravações das câmeras daquela rua, pois costumava pedir dinheiro e oferecer serviços de limpeza de calçadas e poda de árvores no bairro, mas assegurou que não era o autor do crime no salão de beleza e que o fato de transitar pela região não tinha relação com o caso.
A defensora pública responsável pelo pedido de absolvição, Thais Guerra Leandro, relatou em detalhes ao R7 como ocorreu a prisão. Primeiro, após a primeira identificação (extraoficial) com as imagens apresentadas pela cliente, o marido de uma das vítimas reconheceu o homem visto nas câmeras e avisou a polícia, garantindo que fosse preso. Entre seus pertences não havia qualquer objeto que fosse suspeito.
Como ele vivia em situação de rua e transitava sempre pelos mesmos lugares, lembra ela, era fácil encontrá-lo pelo bairro.
Desta busca pelo morador de rua veio a primeira falha na prisão, destaca a defensora: “a princípio, durante o reconhecimento, a vítima não reconheceu o réu na delegacia e achou que ele era diferente [do criminoso]. Mas o delegado colocou o boné no acusado, e aí ela disse ter certeza de que era ele. Aí esteve o erro”. Na sequência, uma das vítimas convenceu a segunda a reconhecer o acusado, e então, no depoimento, ambas confirmaram a identificação.
Guerra argumenta que é necessário questionar como os reconhecimentos são feitos, a exemplo deste caso, e que, a depender da forma, eles induzem a vítima a reconhecer determinada pessoa.
“O fato de o delegado colocar o boné na cabeça do acusado induz a vítima a dizer que foi ele. Ela está ali como alguém que quer valorizar o trabalho do policial, e qualquer forma de induzir cria na vítima uma falsa memória. Além disso, quando você vai pra delegacia e o policial não alerta que não necessariamente você precisa reconhecer alguém, e já se sabe que o suspeito já foi preso, isso também induz a reconhecer alguém”, afirma.
De acordo com o artigo 226 do Código Penal, ao se fazer o reconhecimento, antes a vítima (ou testemunha) deve descrever o acusado, para só assim ser colocado, se possível, ao lado de várias outras pessoas semelhantes, num processo chamado de alinhamento. O procedimento reduz a possibilidade de erros e aumenta a credibilidade do reconhecimento, diz Thais.
As características fornecidas pelas vítimas no depoimento, relembra, foram o rosto fino, cor “parda escura”, aparência de usuário de drogas (devido ao porte físico) e a altura em torno de 1,70 m.
“Em termos de ser humano, ela se recorda da altura, que era magro e que tinha cor parda escura. É uma descrição em que se pode parar centenas de pessoas na rua. E o que acontece muito em casos assim são vítimas brancas reconhecendo réus negros”, comenta a defensora, ao destacar que o racismo muitas vezes atravessa este procedimento, e citando um estudo, que aponta que as pessoas possuem maior facilidade para reconhecer diferenças sobre outros indivíduos da mesma cor.
De novembro de 2019, o homem seguiu preso até o dia da audiência, em julho de 2020, em que a sentença seria definida. Ele não teve contato com ninguém, como familiares, advogados ou defensores, para construir sua defesa, e só pôde falar com Thais no dia do julgamento.
Quando comentou, a 15 minutos do início da sessão, sobre possíveis testemunhas para defendê-lo e falar sobre sua índole – aos 43 anos, ele nunca havia sido preso e, além de pedir dinheiro, fazia serviços para moradores da cidade para sobreviver –, já não haveria tempo hábil para encontrá-las.
O reconhecimento deveria se repetir na audiência, o que levou a mais um problema, segundo a defensora: uma vez que o procedimento foi feito de forma viciada na primeira vez, a chance de se repetir o erro na segunda seria grande, pois a vítima terá mantido na memória o rosto reconhecido pela primeira vez – seja este o autor do crime ou não.
“Além disso, na audiência, não foi realizado o procedimento conforme consta na lei, em que o preso seria posto ao lado de outros suspeitos, e inclusive foi apresentada a mesma foto que mostraram na delegacia e que elas tinham reconhecido antes”, relata.
A sentença de seis anos e oito meses de prisão, inicialmente em regime fechado, se deu com base em quatro pontos: o reconhecimento feito pelas vítimas na delegacia e no julgamento; o fato de ele ser usuário de crack, o que poderia deixá-lo violento; o fato de ser canhoto, como as vítimas descreveram o assaltante; e o testemunho de um morador do bairro que havia dito que conhecia o réu, pois ele andava por aquelas ruas – algo que o próprio acusado nunca negou, uma vez que de fato se deslocava pelo local.
Thais Guerra diz que já trabalhou com diversos casos semelhantes a este e outros em que o reconhecimento fotográfico é a única prova da prisão. A defensora cita situações em que o réu foi reconhecido somente por ser alto e negro, uma outra em que o acusado foi identificado pelo olhar e pela voz, e até um caso de reconhecimento em que o suspeito estava de capacete.
“A vítima está na delegacia pensando que vai cumprir o dever cívico de ajudar a polícia que foi trabalhadora e encontrou o réu, e isso também influencia no reconhecimento”, comenta ela.
Fonte: R7
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